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DE TAXI DRIVER AOS ASSASSINOS EM ESCOLAS

“Irá acontecer daqui a 4 horas e eu tô bem de boa. Estou tão calmo, nem parece que irei aparecer em todos os jornais hoje” – Autor de disparos em escola da Bahia, 14 anos. Matou uma colega cadeirante.

Ao ouvir falar de alguém que cometeu um ato de violência aparentemente tresloucado, minha geração tinha como exemplo cinematográfico Taxi Driver (Martin Scorsese, EUA, 1976, com Robert De Niro). As gerações mais jovens podem falar de Elefante (Gus Van Sant, EUA, 2003). Mas, certamente, terão mais de uma dúzia de roteiros semelhantes. Poucos deles serão ficções.

A diferença entre a referência da minha geração e a dos mais jovens não é só essa, que os filmes atuais sobre o tema do atirador amalucado são documentários ou documentais. Também pesa a característica dos protagonistas atuais em contraste com a figura icônica do então jovem De Niro, na pele do veterano do Vietnã Travis Bickle, que trabalha de motorista de Taxi em Nova York. O motorista tem 26 anos. Os assassinos atuais são adolescentes. O personagem de Niro termina ironicamente herói. Os assassinos atuais terminam como aquilo em que se tornam: assassinos. Em geral cometem suicídio ao final da jornada sangrenta.

O personagem de De Niro, do começo ao meio do filme, se encaminha para figurar na galeria daqueles americanos que atiram em políticos de fama, mas acaba fazendo uma chacina em um prostíbulo, tirando de lá a menor Iris (Judie Foster). Os garotos atuais escolhem como local de chacina o próprio ambiente de convívio, a escola. Travis mata cafetões. Os garotos de hoje matam colegas e professores. Travis tem como passado a violência do Vietnã. Os meninos assassinos têm como passado a suposta violência simbólica da escola, alguma referência a pais drogados e coisas similares.

Todavia, há uma diferença que me parece a mais fundamental de todas: a motivação da chacina. Travis é francamente ganho pela retórica fascista de moralidade: vê sujeira nas ruas de Nova York ao olhar a prostituição. Sua psicose é evidente. Sua solidão e incapacidade de relacionamento o fazem voltar ao que melhor aprendeu como Mariner: as armas. Os garotos assassinos também possuem alguma retórica fascista, mas não denotam nenhuma psicose. Poucos pais ou professores apostariam, antes da chacina, em qualificá-los como portadores de distúrbios psicológicos graves. Seriam apenas “introspectivos”. Alguns foram vistos, quando mais perto de desencadearem os ataques, como envolvidos em episódios de brigas. Mas nada muito determinante. A diferença para com Travis, no que quero destacar, é que o motorista não pensa em ser manchete de jornais, enquanto que os garotos atiradores, quase todos eles, buscam sair do anonimato, serem vistos nas manchetes, poderem ser admirados pelos colegas, professores e, em geral, pela claque de parceiros na internet. Travis não se espelha em outros. Os garotos assassinos, não raro, fazem referência a um outro garoto autor de chacina. Travis não é seguidor. Os garotos são seguidores.

Travis viveu nos Estados Unidos em uma época em que aquela nação já cultivava o “Be your self”, mas de modo algum no sentido que esta cultura possui hoje. A cultura da autenticidade, do “Be your self” atual, está no cérebro e coração dos garotos assassinos. Essa cultura, nos dias atuais, transmutou-se para algo que Gilles Lipovetsky qualifica como “a insignificância espetacularizada”. Todos são alguma coisa de relevante nas redes sociais, ou ao menos acham que são ou pretendem ser algo assim. Todos precisam “aparecer”. Guy Debord vislumbrou tudo isso, ainda nos anos de 1960: a dualidade ser e ter já não tem mais espaço diante do aparecer. O problema é que aparecer para colegas, para professores, “para o mundo”, da forma como outros já fazem, ou seja, aparecer nas redes sociais, é um falso aparecer – são o que pensam esse garotos. Eles notam bem isso. Avaliam que precisam, como os outros, cultivar a autenticidade, mas a autenticidade que advogam, é bem diferente: colocam-na acima da autenticidade que qualificam como falsa, a que impera no meio em que vivem. A comunidade escolar, como todas as comunidades no neoliberalismo, não falsas comunidades. Nossas comunidades, em uma sociedade neoliberal em que cada indivíduo não é propriamente indivíduo, e sim átomo social, não produzem conflitos internos reais, amizades verdadeiras. As igrejas não possuem religiosidade. A escola não possui pedagogia. São eivadas de pseudorreligião e pseudopedagogia respectivamente. Os garotos assassinos são os que mais sentem e se ressentem com isso. Atacam a escola para pode-la destruir como o que é falso, e com isso pretendem dizer ao mundo que eles, sim, são os autênticos, os capazes, são os que merecem o instante final nas capas dos jornais. Às vezes recorrem a Deus para se ligarem a uma “causa maior”. Coisa que Travis jamais invocou.

Travis viveu o momento final dos Trinta Anos Gloriosos. A sociedade estava para deixar o welfare state de lado, os conflitos entre operários e patrões mediados pelo estado virariam logo coisa do passado. Enfim, até mesmo o lastro do dinheiro em ouro estava indo para os ares. O mundo iria virar de ponta cabeça. Viria a desregulamentação dos bancos e a entrada do capitalismo financeiro como o fornecedor da lógica para o capitalismo em geral. Viria a Era Reagan e Thatcher, tentando convencer as pessoas que o importante não era dar dinheiro aos pobres, mas, ao contrário, dar dinheiro aos ricos. Com menos impostos, os ricos iriam investir mais em empresas, e iriam fazer o Céu descer à Terra por meio de mais empregos do que em todos os tempos. A empresa pública deveria dar espaço para a empresa privada. O salário indireto, vindo do benefício do setor público, seria substituído pelo cartão de crédito. A vida presente seria rica em consumo diversificado e não mais seriado, e a dívida de cada um, tornada insuportável, seria uma regra que anunciaria a prosperidade. O mundo neoliberal que gestou os garotos assassinos, que se olham agora sem qualquer perspectiva, foi um mundo que Travis não conheceu. Ele foi gerado pela liberdade dos anos sessenta, que ele viveu de modo atabalhoado, pela baixa escolaridade e pelo final da adolescência gasto nos horrores do Vietnã.

Travis não tem nenhum objetivo de autenticidade. Os garotos assassinos, todos eles, de algum modo, revelam desejo de autenticidade e, em especial, de serem manchetes, de serem notados e reconhecidos. Deixam cartas e bilhetes atestando isso. Travis teve todas as chances de gerar o seu eu em confronto com a negatividade à sua volta. A sociedade de classes esteve viva para ele, os confrontos existiam, e ele os viveu no Vietnã e na América. Por isso mesmo, seu cultivo de armas é, antes de tudo, disciplina de treinamento. Ele sabe que terá oposição. Então, treina para a performance que deverá desempenhar.

Os garotos assassinos são gerados na falta da negatividade. Não participam de nenhum confronto de modo a verificar a presença do Outro. Não treinam. Pegam as armas e as fotografam para a internet. Travis cresceu olhando para fora. Quando ataca o prostíbulo, o faz como algo exterior a ele. Os garotos atuais produzem uma explosão dentro do próprio meio em que vivem. Desde o início sabem que irão matar e depois eliminarão a própria vida. Pretendem explodir os eus e o próprio eu. Sentem que é insuportável a vida narcísica de nunca terem sido postos diante do Outro, do negativo. Fracassaram sem terem oposição. Este é o maior fracasso. Travis não tem nenhum traço de narcisismo, tem psicose. Os garotos assassinos, todos eles, são narcisistas sem Narciso.

Enquanto não soubermos diferenciar os garotos do neoliberalismo e a psicose de Travis, os ataques às escolas continuarão. E aparecerão energúmenos de todos os lados, culpando a internet, redes sociais etc. Na época de Travis, todo o mal começaria a ser visto como sendo fruto da TV. Afinal, havia imbecis para diabo também naquela época.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista

2 comentários em “DE TAXI DRIVER AOS ASSASSINOS EM ESCOLAS”

  1. crafaelv

    Professor, sei que o senhor não é um grande admirador da obra do cineasta Oliver Stone. Entretanto será que o filme “Assassinos por Natureza” (“Natural Born Killers”/1994) já não aponta para esse lado narcisístico do crime? Faço esta pergunta, pois o casal de “serial killers” do longa parecem adorar toda a atenção com que seus atos de barbárie são expostos na mídia.

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